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Por: Juliana Biolchi

A experiência mostra que, quando se trata de crise empresarial, há um paradigma¹ enraizado no senso comum e que, por estar completamente descontextualizado, precisa ser discutido e reformulado. Esse é um movimento imprescindível para que possamos tornar viável a desjudicialização da crise, por meio da recuperação extrajudicial, para o que é necessário construir ambiente que propicie a autocomposição de dívidas de companhias em situação de estresse.

Trata-se do estereótipo de que o devedor é alguém que busca, nos meios legais disponíveis na Lei 11.101/2005 (ou mesmo outros postos no ordenamento jurídico), obter vantagem patrimonial, em detrimento de seus credores. Ou seja, está enraizada na cultura a tendência de confundir inadimplemento com fraude, resultando, daí, o que se pode designar como a criminalização do devedor em crise.

Além de incomodo, esse protótipo causa imenso prejuízo ao resultado útil dos processos (judiciais ou extrajudiciais) de reestruturação de empresas, erguendo paredes onde deveriam existir pontes, impedindo a cooperação e a construção coletiva de um futuro viável para empresas em dificuldade. Funciona, no nosso entender, como um motor para a judicialização, para tratar de situações que poderiam, noutro contexto, encontrar solução extrajudicial.

1- O sentido da crise na biografia das empresas

Para desconstruir a fábula é preciso entender o sentido da crise na vida da empresa. A personalização jurídica dos agentes econômicos se constrói a partir de pilares como autonomia patrimonial, segurança jurídica e liberdade econômica. São valores caros ao ordenamento jurídico e serviram para forjar a sociedade e o direito como hoje conhecemos.

Pode-se dizer que, segundo concebe o direito empresarial, a empresa é uma realidade complexa e multifacetada, cuja existência é fruto da contribuição econômica dos sócios, como investidores, que se reúnem em torno de um objetivo comum e para suprir necessidades humanas. Mas, organizações dessa natureza são muito mais do que pode descrever o discurso jurídico, sem recorrer a outros repertórios de conhecimento. Não cabe aqui uma discussão aprofundada sobre os diversos conceitos de empresa ou mesmo quanto às categorias jurídicas ora manejadas, sob pena de comprometer a necessária brevidade desse texto, mas é imprescindível dar destaque para o aspecto biográfico da empresa: como arremedo da pessoa humana, a pessoa jurídica também nasce, tem sua própria vida e, em algum momento, enfrentará a morte.

Como sucede ao modelo humano, do qual pretende ser transferência, o declínio é parte da vida da empresa e uma ameaça real à sua continuidade. O perecimento compromete a perenidade porque, se não for prevenido ou tratado, gera a crise e, com ela, pode levar ao fim.

Em outras palavras, a crise é a manifestação dos distúrbios do corpo empresarial. É a forma aguda de uma doença, outrora silenciosa, que tem origem em circunstâncias internas ou externas. Tal qual o corpo humano, o corpo empresarial se deixa intoxicar pelos patógenos,que se desenvolvem em circunstâncias favoráveis. Entender e conter essas intercorrências é um desafio que muitas vezes encontra o fracasso. Com ele, vem a crise, a manifestação exasperada da enfermidade. Como sucede ao ser humano, para a empresa não se trata de se ela enfrentará a finitude, mas quando e quão preparada estará.

Quando a prevenção falha, o desafio passa a ser sobrepujar o colapso, e este objetivo tem como variável dependente o comportamento. Se as partes interessadas forem capazes de identificar os riscos que não foram adequadamente tratados e que converteram em causas da crise e de agir em cooperação para superá-los, a empresa poderá ser salva. Do contrário, o infortúnio virá, e ele deve ser entendido como uma construção coletiva.

Comportamentos são determinados, entre outros aspectos, pelo sistema de valores dos indivíduos e é nesse preciso ponto que a cultura estereotipada em torno do devedor em crise funciona como limitador do diálogo, comprometendo o soerguimento empresarial, inviabilizando saídas que exigem, dos envolvidos, a cooperação.


¹ A palavra paradigma, neste texto, é empregada no seu sentido comum, de padrão que costuma ser seguido ou repetido pelas pessoas. Não se pretende discutir seu conteúdo como categoria científica, pelas limitações havidas no presente escrito.


2- Das respostas legais à crise: a recuperação extrajudicial

Desde 2005, o princípio da preservação da atividade econômica viável passou a ser pedra de toque do sistema de insolvência brasileiro, com a promulgação da Lei 11.101/2005. Uma das mudanças mais relevantes para a análise feita nesse estudo foi uma inversão valorativa: antes, quando o devedor partia para a transação com seus credores, configurava uma das situações consideradas causa de falência (embora, na prática, o preceito estivesse superado); agora, negociar coletivamente se transformou em alternativa e deu corpo à recuperação extrajudicial.

Neste contexto, a recuperação extrajudicial é o instrumento que incentiva a autocomposição entre credores e devedor, mediante a negociação de um plano de recuperação que preverá as estratégias de superação da crise e, com elas, as novas bases de pagamento do passivo. A reestruturação do endividamento é formalizada em um documento multipartes, cuja negociação vem antes do pedido ao juízo. Este pode acontecer – para obtenção da adesão forçada de 2/5 dos credores abrangidos, quando há concordância dos outros 3/5 (homologação obrigatória) –, ou não – se a adesão for de todos os credores (homologação facultativa).

Não podem ser incluídos no plano créditos trabalhistas e os demais já excetuados da recuperação judicial (art. 49, § 3º, da Lei 11.101/2005). Fora essas restrições há uma grande flexibilidade, porque os credores não estão compartimentalizados em classes (o art. 163 remete às categorias da falência) e se trabalha com a ideia de que o plano poderá envolver a totalidade de uma ou mais espécies, até porque própria lei permite negociações em paralelo, no art. 167.

Diferentemente da recuperação judicial, na extrajudicial não há nomeação de administrador judicial (o que reduz custo); não há submissão da alienação de bens ou direitos à autorização judicial (o que facilita o financiamento); o descumprimento do plano não leva à decretação da falência (o que traz proteção); não gera stay period universal (apenas suspende as ações dos credores sujeitos ao plano); homologa-se por sentença, desafiável por apelação; e não suspende pedidos de falência (o que poderia ser aprimorado).

O grande desafio para colocar em prática projetos de recuperação extrajudicial é a dificuldade de diálogo que resulta do inadimplemento – ou da perspectiva de que ele irá acontecer. Se flexibilidade é uma das potencias da ferramenta, a cultura criminalizatória é um dos grandes obstáculos.

3. Conclusão

Entende-se que os instrumentos da Lei 11.101/2005 são pensados segundo uma escala de gravidade, que pode ser lida não só sob o ponto de vista econômico-financeiro, mas também reputacional. Dito de outro modo: para eleger entre recuperação extrajudicial ou judicial é preciso ter em vista a abrangência e os efeitos de cada uma, por óbvio, mas também o quanto o relacionamento do devedor com as partes interessadas se distendeu.

No cálculo de conveniência é relevante entender o quanto os credores não acreditam mais no devedor e, portanto, não estão mais dispostos a lhe conceder crédito. Mas, a verdadeira equação diz respeito ao quanto essa reputação se desconstruiu com o inadimplemento, por conta da criminalização do devedor em crise.

O risco à existência é, ao mesmo tempo, ameaça e oportunidade. Seja para o indivíduo, seja para o sistema. O desfecho depende, exclusivamente, da habilidade das pessoas envolvidas na realidade empresarial, no sentido de uma coletividade abrangente e que alcança as partes interessadas, tais sócios, devedor, fornecedores, clientes, concorrentes, comunidade e funcionários, para identificar os principais.

Uma empresa em crise deveria disparar, entre esses interessados, o gatilho da colaboração. Assim fosse, poderíamos trabalhar com autocomposição e demandar menos do Poder Judiciário, recorrendo mais e mais à recuperação extrajudicial. A litigiosidade nos impede. Para atingir esse ambiente ótimo de negociação o principal desafio é remodular o discurso de criminalização do devedor em crise, que contribui enormemente para dificultar entendimentos, construindo um novo paradigma e uma nova capacidade de resposta à ameaça à perenidade das empresas. Isso virá a bem de todos, tornando o sistema de insolvência mais eficiente, desonerando o Poder Judiciário de demandas que poderiam ser perfeitamente resolvidas pela autocomposição.

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