Uma visão a partir do fenômeno da desmonetização e do exercício de empresa em ambientes virtuais
O Brasil ainda enfrenta severas consequências da crise econômica vivida desde os idos de 2014 como pode ser visualizado nos números da taxa de desemprego ainda em níveis alarmantes, e do desempenho do setor produtivo do país, ainda aquém do esperado para os mais diversos setores produtivos.
Entretanto, esse cenário proporcionou o amadurecimento do sistema de insolvência brasileiro, notadamente o instituto da recuperação judicial, diante do aumento do ajuizamento dessas ações por todas as unidades da federação, o que permitiu o desenvolvimento de muitas teses e o questionamento de diversos institutos.
Um dos assuntos sobre os quais há intensa discussão é conceito de bens de capital essenciais à atividade em recuperação judicial, diante da previsão contida na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, em cujo texto se confere uma proteção ao devedor em recuperação judicial diante de créditos não sujeitos ao feito recuperacional.
De proêmio, não podemos esquecer que a competência para deliberar sobre bens essenciais da recuperanda é do Juízo da recuperação judicial, consoante jurisprudência do STJ. Cito os seguintes precedentes sobre o tema: (AgRg no CC 143.802/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 19/04/2016); (AgRg no RCD no CC 134.655/AL, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/10/2015, DJe 03/11/2015); (REsp 1298670/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/5/2015, DJe 26/6/2015)
Já para a definição de bem de capital, por ora, existe precedente do STJ no REsp 1.758.746/GO da lavra do Min. Bellizze, no qual se estabeleceu uma conceituação restrita sobre o tema, cuja ementa segue assim transcrita, verbis:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO DE CRÉDITO/RECEBÍVEIS EM GARANTIA FIDUCIÁRIA A EMPRÉSTIMO TOMADO PELA EMPRESA DEVEDORA. RETENÇÃO DO CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE PELO JUÍZO RECUPERACIONAL, POR REPUTAR QUE O ALUDIDO BEM É ESSENCIAL AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA, COMPREENDENDO-SE, REFLEXAMENTE, QUE SE TRATARIA DE BEM DE CAPITAL, NA DICÇÃO DO § 3º, IN FINE, DO ART. 49 DA LEI N. 11.101/2005. IMPOSSIBILIDADE. DEFINIÇÃO, PELO STJ, DA ABRANGÊNCIA DO TERMO “BEM DE CAPITAL”. NECESSIDADE. TRAVA BANCÁRIA RESTABELECIDA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
- A lei 11.101/2005, embora tenha excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, acentuou que os “bens de capital”, objeto de garantia fiduciária, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, permaneceriam na posse da recuperanda durante o stay period. 1.1 A conceituação de “bem de capital”, referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva. Para esse propósito, deve-se inferir, de modo objetivo, a abrangência do termo “bem de capital”, conferindo-se-lhe interpretação sistemática que, a um só tempo, atenda aos ditames da lei de regência e não descaracterize ou esvazie a garantia fiduciária que recai sobre o “bem de capital”, que se encontra provisoriamente na posse da recuperanda.
- De seu teor infere-se que o bem, para se caracterizar como bem de capital, deve utilizado no processo produtivo da empresa, já que necessário ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário. Constata-se, ainda, que o bem, para tal categorização, há de se encontrar na posse da recuperanda, porquanto, como visto, utilizado em seu processo produtivo. Do contrário, aliás, afigurar-se-ia de todo impróprio – e na lei não há dizeres inúteis – falar em “retenção” ou “proibição de retirada”. Por fim, ainda para efeito de identificação do “bem de capital” referido no preceito legal, não se pode atribuir tal qualidade a um bem, cuja utilização signifique o próprio esvaziamento da garantia fiduciária. Isso porque, ao final do stay period, o bem deverá ser restituído ao proprietário, o credor fiduciário.
- A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária – bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa.
- Por meio da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito (em que se transfere a propriedade resolúvel do direito creditício, representado, no último caso, pelo título – bem móvel incorpóreo e fungível, por natureza), o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede “seus recebíveis” à instituição financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá apoderar-se diretamente do crédito ou receber o correlato pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante). Nesse contexto, como se constata, o crédito, cedido fiduciariamente, nem sequer se encontra na posse da recuperanda, afigurando-se de todo imprópria a intervenção judicial para esse propósito (liberação da trava bancária).
- A exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo “bem de capital”. Isso porque a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade (angariar fundos, pagamento de despesas, pagamento de credores submetidos ou não à recuperação judicial, etc), além de desvirtuar a própria finalidade dos “bens de capital”, fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial.
- Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, “bem de capital”, ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period.
6.1 A partir de tal conceituação, pode-se concluir, in casu, não se estar diante de bem de capital, circunstância que, por expressa disposição legal, não autoriza o Juízo da recuperação judicial obstar que o credor fiduciário satisfaça seu crédito diretamente com os devedores da recuperanda, no caso, por meio da denominada trava bancária.
- Recurso especial provido.
(REsp 1758746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018)
Da leitura do julgado, foi considerada necessária a presença de três requisitos para que o bem seja considerado “de capital”, a saber: a necessidade de estar inserido na cadeia de produção; de estar na posse da recuperanda em razão de sua corporificação e; de poder ser restituído ao final do stay period ao credor fiduciário.
Fixadas essas premissas, no aludido julgado o STJ não considerou o bem móvel dinheiro como apto a ser classificado como bem de capital da recuperanda, justamente por não deter a posse da coisa e por ele não poder ser restituído ao final do stay period justamente por se classificar como bem consumível.
Entretanto, com todas as vênias ao posicionamento transcrito, entendo que a questão merece uma reflexão diversa, em face de determinados elementos não trabalhados no precedente mencionado e à luz da superação do dualismo pendular como vetor de interpretação das regras do sistema da lei 11.101/2005.
Estamos vivendo uma realidade cada vez mais intensa de virtualização das coisas, fato também cada vez mais presente na organização dos fatores de produção do meio empresarial e nas transações e operações do sistema financeiro mundial.
Diversas atividades empresariais hoje são desenvolvidas e exploradas quase que exclusivamente através de ambiente virtual, no qual o empresário age profissionalmente com a organização dos fatores de produção na busca do lucro, sem se valer de bens corpóreos para o exercício da empresa. Seus ativos compreendem plataformas tecnológicas, know-how especializado para atuação no ambiente virtual e os recebíveis oriundos da exploração da atividade.
As operações e transações do mercado financeiro global também estão sofrendo sensível impacto com o fenômeno da desmonetização, através da criação de novas tecnologias que permitem a criação de moedas virtuais e pelo recrudescimento do volume de transações eletrônicas envolvendo pagamentos de obrigações e transferência de ativos sem a utilização de papel-moeda.
De fato, as pessoas estão se desvencilhando da utilização do papel-moeda para migrarem cada vez mais para as transações eletrônicas. Os meios eletrônicos de circulação de ativos possuem as vantagens de trazer maior comodidade e segurança no dia a dia das pessoas, além de possibilitar maior transparência nas operações pela facilidade de rastreamento das transações, evitando-se atos de evasão fiscal.
Esse movimento de virtualização do exercício de empresa e de circulação de ativos demanda uma releitura de institutos tradicionais do direito civil e empresarial conferindo impacto direto na leitura da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, sob a ótica da isonomia e da própria ideia de preservação da empresa, nos termos do art. 47 do aludido diploma legal.
Ao se aplicar o entendimento proposto no REsp 1.758.746, diversas atividades empresariais de relevo estarão excluídas da proteção prevista na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, tão somente pelo fato da operação ser realizada em ambiente virtual, impedindo que bens essenciais à atividade, dentre eles os recebíveis, possam permanecer à disposição do empresário, pela ausência de corporificação desses bens e pela restrita leitura conferida ao instituto da posse, criando-se uma distinção injustificável entre empresas regularmente exploradas.
Além da deletéria desigualdade criada a se prevalecer o conceito restrito de bem de capital, é necessário termos em mente que o conceito de posse sobre ativos monetários não pode mais estar atrelado à corporificação do bem, diante do aumento das transações eletrônicas envolvendo a circulação de dinheiro.
Isso porque a disponibilidade de ativos pode ser exercida a qualquer momento pelo seu titular através de acesso aos instrumentos de internet banking, aplicativos de telefone celular ou até mesmo pela utilização de cartões magnéticos pelos meios de operações de crédito e débito, cada vez mais acessíveis em nível global.
De mais a mais, ainda que se sustente a impossibilidade de restituição do dinheiro ao final do stay period pelo fato do bem ser consumível, diferentemente de uma máquina ou qualquer outro bem não consumível, não se pode olvidar que há renovação dos recebíveis pela perenidade dos pagamentos realizados pelos devedores da recuperanda no decurso de tempo. Assim, ao final do período de suspensão das ações e execuções contra a devedora, os recebíveis continuarão a existir e a garantia poderá ser exercida no momento oportuno sem prejuízo ao proprietário fiduciário.
Na realidade, ao se permitir o uso indiscriminado da trava bancária, o que se proporcionará é o risco de paralisação da atividade pelo sufocamento financeiro resultante do impedimento de acesso ao dinheiro e, consequentemente, de cessação da garantia outrora ofertada, pois a empresa não mais existirá e os recebíveis serão extintos antes mesmo da satisfação total do débito existente junto ao credor fiduciário.
Ao se considerar a existência de atividades empresariais engendradas predominantemente em meios virtuais ou de prestação de serviços que possuem ativos essenciais exclusivamente em meios virtuais, somada à uma releitura do conceito de posse sobre bens existentes em sistemas eletrônicos, permite-se a subsunção dos recebíveis da recuperanda no conceito de bem de capital, justamente porque inseridos na cadeia de produção através da composição do fluxo de caixa, pela possibilidade do exercício imediato de posse através dos meios eletrônicos à disposição de uso e porque poderá haver a perenidade da garantia diante da continuidade dos pagamentos que serão feitos à recuperanda, restituindo-se ao credor fiduciário, ao final do stay period, a possibilidade de realização da trava bancária na hipótese de inadimplemento da obrigação principal.
Essa visão sobre o tema está em consonância com a proporcionalidade buscada pela superação do dualismo pendular na recuperação judicial, a fim de que os benefícios sociais gerados pela atividade sejam mantidos, afastando-se a visão restritiva de mera proteção de credores ou devedor, conforme o caso.
No paradigmático REsp 1.337.989, o Eminente Ministro Luis Felipe Salomão bem delineou um importante vetor interpretativo da lei 11.101/2005, assim vernaculamente posto:
Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto.
Desse modo, a aplicação da lei 11.101/2005, no tocante ao instituto da recuperação judicial, deve atentar para a teoria da superação do dualismo pendular proposta por Daniel Carnio Costa e reconhecida no V. Acórdão do recurso especial acima mencionado, verbis:
Agora, pela teoria da superação do dualismo pendular, há consenso, na doutrina e no direito comparado, no sentido de que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se acolher aquela que buscar conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial
Isso porque a viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas, os quais devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial.
Nesse sentido, o termo “retirada do estabelecimento”, diante das circunstâncias inerentes às atividades virtuais ou de bens armazenados em meios eletrônicos somado ao vetor de interpretação constante do REsp 1.337.989, deve ser entendimento como impedimento à realização da garantia durante o stay period, justamente permitir que atividades empresariais virtuais ou de prestação de serviços também sejam alcançadas pela proteção constante da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005.
Por isso, a melhor interpretação da ressalva trazida pelo art. 49, §3º, da lei 11.101/2005 deve ser no sentido de garantir a plenitude da busca da superação da crise empresarial, para vedar a discriminação de atividades empresariais regulares atuantes nos meios virtuais ou que somente possuam bens de produção essenciais situados em ambientes eletrônicos estendendo-lhes, também, a proteção de manutenção dos bens essenciais à atividades durante o stay period, tudo com o escopo de se preservar os benefícios sociais da atividade empresarial.
Fonte: Migalhas – Autor: João de Oliveira Rodrigues Filho