Funcionários não sabem o que fazer para receber o saldo da rescisão e alegam terem sido enganados
Alegando ser forçado pelas consequências da pandemia do novo coronavírus, o famoso restaurante de carnes demitiu nada menos que 690 funcionários no mês de abril. Só no ponto de Botafogo, de frente para a baía de Guanabara, dos 82 funcionários, 73 foram demitidos. Situação semelhante ocorreu na filial da Barra da Tijuca. A empresa continua funcionando, trabalhando apenas com ‘delivery’. Além do drama natural causado por demissões, o problema maior é que a empresa se recusa a pagar todas as verbas rescisórias dos empregados, alegando que esta seria uma obrigação do Governo Estadual.
A churrascaria, hoje uma grande empresa multinacional com ações comercializadas na Bolsa de Nova Iorque – NASDAQ – foi vendida em 2018 à Rhône Capital por 560 milhões de dólares (cerca de 3 bilhões de reais). A Rhône gerencia cerca de 50 bilhões de reais em fundos e investimentos no mundo inteiro.
O DIÁRIO DO RIO teve acesso ao documento que o departamento de RH da empresa fez para os empregados assinarem no dia 4 de abril. Intitulado “Comunicação de Rescisão do Contrato de Trabalho por Ato de Autoridade“, a churrascaria afirma que por conta da disseminação do novo coronavírus, e dos decretos estaduais determinando o “encerramento das atividades” do restaurante, e também por conta do que trata o artigo 486 da CLT (aquele citado pelo Presidente Bolsonaro, na polêmica declaração do dia 27 de março), os empregados estariam sendo demitidos. No mesmo documento, a churrascaria afirma que “o pagamento de suas verbas rescisórias nos termos do art 486 da CLT, deverá ser a cargo do GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, autoridade que decretou a paralisação das atividades do EMPREGADOR“. Ou seja, para receber suas verbas rescisórias, o ex-funcionário teria que cobrá-las do tesouro estadual.
A Fogo de Chão afirma também no documento, que, “por mera liberalidade” (ou seja, não porque a lei a obrigue, mas sim porque quer dar este benefício ao empregado), vai depositar na conta dos empregados o saldo de férias (proporcionais e vencidas), o adicional de 1/3, e o décimo terceiro proporcional “em até 10 dias”. O documento é reproduzido ao final desta reportagem, e se baseia basicamente no tal artigo 486 da CLT.
O ato causou a revolta de vários funcionários. O barman Felipe Castro, com 4 anos de casa, é um dos que estão indignados. “Para mim, usaram de má fé e do momento pra beneficiar a empresa“, disse. O barman, que é portador de necessidades especiais e teve que retornar para o Piauí por não ter mais condições de se manter no Rio, falou com o DIÁRIO via redes sociais. “O gerente da loja, Sr. Vagner, fez primeiro uma reunião e falou que iria pagar tudo, só não pagaria o aviso prévio. Nós aceitamos e ele mandou assinarmos aquele papel. Assinamos em confiança“, lamentou o funcionário. A funcionária N., na empresa há mais tempo que Felipe, completou: “Botou todos de férias por 10 dias e depois fez reunião para demitir todos e falando que a multa e aviso era pelo Governo, mas como vamos fazer para receber? Ninguém soube informar.”
Funcionários citam que quando descobriram que não iriam receber seus direitos, teria entrado no circuito o Diretor de Recursos Humanos Marcos Ono, mas que sem ter como explicar efetivamente como fariam para receber, o executivo teria bloqueado todos os funcionários que buscam explicações, em suas redes sociais e whatsapp. “Ao menos pra mim acabaram pagando 20% da rescisão, mas ainda afirmam que vamos ter que cobrar o resto do Governador. O que não entendo é que o restaurante continua funcionando pra delivery. Nós dávamos o sangue por essa empresa, eu não tinha hora, os clientes gostam da gente, nós também somos a Fogo de Chão“, disse G., ex-funcionária do restaurante da Barra.
“Eu acho que o seu Wagner mentiu pra gente assinar sem ler. Depois que veio a história que a gente não ia receber o resto. Concordamos em não receber o Aviso Prévio, o resto eles enrolaram a gente“, revolta-se Felipe.
Cliente da Fogo de Chão de Botafogo, Bruna de Barros soube da história pela reportagem. “Sinceramente, eu acho que além da comida e da vista, o charme da churrascaria era a educação e a alegria dos funcionários, que pareciam trabalhar alegres e nos tratavam como reis. Fiquei chocada. Não vou comer numa empresa que trata os empregados assim, acho que vale o boicote“.
Ao tratar com a imprensa no fim de março, o presidente Jair Bolsonaro citou o tal artigo 486, usado pela Fogo de Chão no documento. “Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for obrigada a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do Executivo (…) Os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito. Tá ok?”
Elton Batalha, professor de Direito Trabalhista da Universidade Mackenzie, acredita que essa tese deve ser muito utilizada em ações nos próximos meses, mas não acha que ela prosperará: “Provavelmente, quando o Judiciário apreciar essas ações, considerará que o 486 da CLT não é aplicável à situação, pois o ato governamental de determinação de quarentena (e consequente paralisação de atividade) é justificável ante o surto da Covid-19. Caso a atitude governamental não se justificasse cientificamente, seria diferente“, diz.
Os advogados Mauricio Gasparini e Mariana Bissolli Cerqueira Cerezer, da área trabalhista do escritório Finocchio & Ustra, entendem “que o risco da atividade econômica é do próprio empregador e não pode repassá-lo a terceiro, o que inclui órgão da administração pública, de modo que se espera a prova cabal da sua indevida interferência“. Ou seja, traduzindo o juridiquês, para eles, o governo só teria que arcar com a indenização caso não tenha uma justificativa justa e suficiente para ter mandado o restaurante fechar suas portas. Será que uma pandemia – que é mundial e grave por excelência – reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, não seria tal justificativa?
Para o advogado Vinícius Cordeiro, a medida “não é legal, além de mostrar uma grande insensibilidade social“. Cordeiro entende que “cabe até, se os empregados quiserem agir de forma coletiva, o pedido de reintegração ao trabalho, com grandes chances de acolhimento” pela Justiça do Trabalho. Ele defende que “não há como jogar a conta no Governo“. Para João Pedro Figueira, também do ramo, “o Art. 486 da CLT está sendo claramente distorcido pela empresa. Incrível impor ao Governo o ônus que é deles. No final, quem fica desamparado é o empregado“.
O DIÁRIO verificou que alguns advogados – franca minoria dos consultados – acham que o artigo citado pela Fogo de Chão e pelo Presidente da República poderia ser utilizado. Alguns deles entendem que só poderia ser utilizado se a Fogo de Chão tivesse efetivamente paralisado suas atividades, o que não ocorreu, pois o Delivery segue. Mas todos eles concordam com uma coisa. Este dispositivo da lei nunca foi largamente utilizado antes, e não há uma fórmula pronta para que os funcionários, usando este artigo, receba o que lhes é devido. Isto significa que, mesmo se no fim a Justiça do Trabalho considerar o procedimento válido para a situação deles, podem se passar muitos anos até que vejam a cor do dinheiro.
Procurada pela reportagem do DIÁRIO DO RIO, de manhã cedo, a assessoria da churrascaria não respondeu à reportagem. Numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo, no dia 8 de maio, o executivo Paulo Antunes, que comanda a empresa no Brasil, disse: “Desligamos a maior parte [dos funcionários], para que eles tivessem acesso ao FGTS e passassem o período de crise com caixa“. Na mesma entrevista, o executivo disse também que a rede pretenderia recontratá-los, depois. A entrevista do dia 8 fala em 400 demissões.
ATUALIZAÇÃO – 15 de maio de 2020
Cerca de 24 horas após a publicação da matéria, o Fogo de Chão enviou ao DIÁRIO DO RIO a seguinte nota oficial a respeito do assunto, que reproduzimos na íntegra:
”O zelo por nossos colaboradores sempre foi compromisso central da filosofia de trabalho do Fogo de Chão. Reforçamos que atuamos seguindo as normas do artigo 486 da CLT, indenizando os membros da nossa equipe de acordo com a lei, para que todos tivessem acesso ao pagamento de férias e 13º salário, além do acesso ao Fundo de Garantia e seguro desemprego. A expectativa do Fogo de Chão Brasil é, à medida que os restaurantes reabram e a economia melhore, recontratar gradualmente a nossa equipe.”
Fonte: Diário do Rio.com
Foto: Divulgação/ Fogo de Chão