Por Felipe Herdem Lima – ConJur
Em breve cronologia histórica, o processo administrativo foi introduzido pela primeira vez na Constituição de 1934, mediante a consagração de um regime processual disciplinador da perda do cargo dos servidores públicos. O tema era tratado no artigo 169, que preceituava que os funcionários públicos só poderiam ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e no qual lhes será assegurada plena defesa [1].
Por sua vez, a Constituição de 1937 tratou do processo administrativo em dois momentos, ao tratar sobre a demissão de membros do Ministério Público dos Estados e da União (artigo 127) [2] e de funcionários públicos (artigo 189, II) [3], tornando obrigatória a observância do processo administrativo com a garantia da ampla defesa para a constitucionalidade do ato. Já na Constituição de 1967, o processo administrativo foi disciplinado no artigo 103, II [4], que exigia o processo administrativo com a garantia da ampla defesa para a demissão de funcionário público.
A Constituição de 1988 não rompeu com a tradição de estipular o processo administrativo como um regime processual disciplinador da perda do cargo de funcionários públicos ao tratar do tema em seu artigo 41, § 1º, II [5], prevendo a garantia do processo administrativo disciplinar para a perda do cargo do servidor estável. Entretanto, a Constituição de 1988 inovou, ao dispor, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), Capítulo I (Dos Direitos e Deveres individuais e Coletivos), o artigo 5º, LV, que garante aos litigantes e aos acusados em geral, em processo judicial ou administrativo, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Neste sentido, como sustenta Romeu Felipe Barcellar Filho, o artigo 5º, LV, situou o processo administrativo como garantia constitucional, fixando verdadeira regra geral de conteúdo (contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes) e de previsão de exigibilidade (em face de litigantes ou acusados) [6].
Vale notar que a análise isolada do artigo 5º, LV, poderia levar ao entendimento de que o procedimento somente estaria elevado à garantia constitucional quando inserido em processo. Ocorre que o artigo 5º LIV garante o “devido processo legal”, vinculando, portanto, o exercício do poder ao modelo procedimental estabelecido pela Constituição e pela lei. Este é também o entendimento de Odete Medauar, que defende a elação constitucional do processo administrativo ao status de garantia constitucional, destinado “a tutelar direitos, porque representa meio para que sejam preservados, reconhecidos ou cumpridos direitos dos indivíduos na atuação administrativa” [7].
Portanto, o processo administrativo, que, mesmo antes da Constituição de 1988, era compreendido como garantia jurídica, passou a ser uma garantia constitucional, gerando duas consequências imediatas: I) fixação de garantias mínimas incidentes diretamente na disciplina do processo; e II) criação de um controle de constitucionalidade sobre procedimentos administrativos, posto que a Constituição não esgotou o tema [8].
Nesse sentido, se o processo administrativo impera como garantia constitucional, está confirmada a premissa de investigação da disciplina processual administrativa: partindo da Constituição, a lei deve reconstruir o processo à sua imagem e semelhança. Dessa forma, o legislador não está livre para tratar das normas do processo administrativo. Este deverá respeitar as garantias mínimas do contraditório, ampla defesa e do devido processo legal.
Por sua vez, processo administrativo não é apenas o que está na lei (lida conforme a Constituição), mas também o que deveria estar e não está, por força de imposição constitucional [9]. Esse argumento ganha força, já que o artigo 5º, §2º, da Constituição reconhece ao lado dos direitos fundamentais expressos direitos implícitos que decorrem do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Assim, como acentua José Adércio Leite Sampaio, “os direitos e garantias fundamentais apresentam um conteúdo aberto à ampliação e projetado para o futuro. Não há uma tutela ou garantia numerus calusus de direitos fundamentais, porque não há um numerus clausus dos perigos” [10]. No mesmo sentido, Jorge Miranda, tratando sobre o tema, observa que “não são os direitos fundamentais que se movem no âmbito da lei, mas a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais” [11].
Logo, não se pode falar em processo sem a presença do contraditório ou ampla defesa, “estes qualificam o agir estatal no âmbito da processualidade, sintetizando-os enquanto garantia de meios e resultados” [12].
Por fim, deve-se ressaltar a importância do processo administrativo consubstanciado através do contraditório e ampla defesa, no momento de qualquer imposição, por parte da Administração, de gravame ou sanção que atinja, direta ou indiretamente, o patrimônio dos administrados. O Supremo Tribunal Federal já se posicionou sobre o tema, acolhendo a tese aqui defendida.
[1] “Artigo 169 — Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será assegurada plena defesa”.
[2] “Artigo 127 — Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais da carreira mediante concurso. Após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária ou mediante processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos a não ser mediante representação motivada do Chefe do Ministério Público, com fundamento em conveniência do serviço”.
[3] “Artigo 189 — Os funcionários públicos perderão o cargo:
(…)
II – quando estáveis, no caso do número anterior, no de se extinguir o cargo ou no de serem demitidos mediante processo administrativo em que se lhes tenha assegurado ampla defesa”.
[4] “Artigo 103 — A demissão somente será aplicada ao funcionário:
(…)
II- estável, na hipótese do número anterior, ou mediante processo administrativo, em que se lhe tenha assegurado ampla defesa”.
[5] “Artigo 41 — São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público:
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo:
(…)
II- mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa”.
[6] BARCELLAR FILHO, Romeu Felipe. A distinção entre processo e procedimento administrativo: consequências quanto ao regime jurídico e às garantias do processo disciplinar. In: ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; MIGUEL, Luiz Felipe Hadich; SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.). Direito público em evolução: estudos em homenagem à Professora Odete Medauar. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 358.
[7] MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 76-77.
[8] BARCELLAR FILHO, Romeu Felipe. Op. cit., p. 359.
[9] Ibid, p. 360.
[10] SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 672.
[11] MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Ed., 1998, p. 282-283.
[12] BARCELLAR FILHO, Romeu Felipe. Op.cit., p. 361.
Fonte: ConJur – Consultório Jurídico
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