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Por: Cássio Cavalli

Desde o momento em que a Organização Mundial da Saúde declarou oficialmente que o planeta passa por uma pandemia, sabia-se que empresas e setores inteiros da economia seriam severamente impactados. Para enfrentar a crise e reduzir os danos, diversos países adotaram um protocolo de crise que inclui, dentre outras medidas, reformas da legislação de falência e recuperação de empresas para tornar os processos mais céleres e eficientes.

Nesses pouco mais de três meses, alguns países chegaram a implementar duas ou até mais rodadas de reforma nas suas leis para lidar com a crise empresarial. Enquanto isso, o Brasil dormita em berço esplêndido, à semelhança de um navio que ruma silenciosamente na noite escura em direção ao iceberg que poderá leva-lo ao fundo do mar. As empresas brasileiras, desprovidas de coletes e botes salva-vidas que uma reforma da lei de recuperação de empresas representaria, assistem em câmera lenta ao agonizante cenário de inação do poder central. 

Algo deve ser feito. Não há opção. Todos sabem que a postura de avestruz não assegurará uma melhor proteção à crise que já chegou. Por que, então, não se reforma a lei de recuperação de empresas e falências? Dentre as muitas respostas desponta a própria incerteza do legislador ante o que deve ser feito. Leis de insolvência lidam com situações em que o cobertor é curto e todos os afetados lutam para puxá-lo para o seu lado.

Qualquer movimento legislativo arrasta o cobertor mais para um lado e desperta a crítica do lado desfavorecido. O impasse só pode ser superado o com conhecimento assentado, obtido da experiência vivida, que desvele os raciocínios frequentemente contraintuitivos que permeiam a legislação concursal. Com isso, quero dizer que o poder Legislativo frequentemente aguarda a consolidação de soluções por meio da jurisprudência para somente após cristalizá-las em texto legislado.

 A tabelinha entre o poder Judiciário e o poder Legislativo, aliás, encontra-se na própria gênese do instituto da recuperação judicial de empresas. No século XIX, diversas disputas políticas levaram os Estados Unidos a um vazio legislativo em matéria falimentar, ao mesmo tempo em que grave crise econômica instaurou-se na indústria ferroviária, então a mais relevante do país. Caso fossem deixadas ao léu, a sofrerem execuções de seus diversos credores, as empresas ferroviárias teriam sido destroçadas, e os EUA voltariam a se deslocar de carroças. Ante a incerteza legislativa para lidar com a crise, o “sistema judicial era a única alternativa institucional óbvia”, registrou David Skeel em seu monumental Debt’s Dominion (Princeton University Press, 2004). Com efeito, ao “invés de recorrerem ao legislador […], administradores e bancos de investimento de ferrovias em crise olharam para outra instituição governamental: as cortes. As cortes responderam e, na história do direito concursal norte-americano, isto fez toda a diferença.” Utilizando-se de ingredientes encontrados em regras de processo civil, – parte no que chamaríamos de penhora de empresa com adjudicação de rendimentos (receiverships) e parte no que denominaríamos concurso especial de credores em execução hipotecária (foreclosure law), – as cortes norte-americanas desempenharam uma das “mais extraordinárias danças da história” do direito e criaram o instituto dos equity receivership para proteger empresas e preservar valor de ativos do devedor. A cristalização em texto legislado só ocorreu na década de 1930, muitos anos após a consolidação das soluções criadas pela jurisprudência. 

Estas foram as instituições que, vertidas para o Bankruptcy Code de 1978, serviram de modelo para os Princípios e Diretrizes do Banco Mundial que influenciaram a Lei 11.101/2005. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que o instituto da recuperação judicial de empresas, tal qual legislado, nasceu da jurisprudência. E à jurisprudência deve seus desenvolvimentos.

É consabido por todos os que atuam na área que a disciplina da recuperação de empresas foi imensamente aprimorada pela atuação dos tribunais brasileiros. Não à toa. O poder Judiciário é aquele que está mais próximo dos problemas suscitados pela crise empresarial e que tem melhor conhecimento para implementar soluções técnicas que, em conjunto, darão forma a um corpo de normas mais adequado a resolver situações de insolvência. 

Ao mesmo tempo, a crise econômica atual tem o avassalador potencial de  devastar empresas, empregos e geração de tributos. A premência por soluções eficientes e criativas é inequívoca. No contexto da profunda crise econômica causada pela pandemia, é hora de o poder Judiciário novamente assumir a dianteira na construção de soluções institucionais necessárias para a proteção de nossas empresas e de nossa economia.

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