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Ante a nova realidade do comércio eletrônico. Os problemas relacionados ao mundo digital dentro do universo da recuperação judicial e da falência são evidentes a medida que ainda não há jurisprudência consolidada.

O comércio digital já é uma realidade na vida da grande maioria da população mundial, seja ele de produtos ou dos mais variados serviços, como cursos, delivery, consultorias digitais, dentre outros. Essa revolução tecnológica fez com que inúmeros setores se readequassem aos novos agentes de mercado e, dentro desse contexto, com o Direito não poderia ser diferente.

Hoje, o comércio digital aponta números significativos. Um dado importante é a expressividade de valores que o e-commerce movimenta e movimentará nos próximos anos e a quantidade de agentes envolvidos nessa relação. Estudos estatísticos produzidos pela empresa Statista preveem que a receita global do mercado de e-commerce de varejo chegará a US$ 4,88 trilhões até 2021.

Ainda, sobre os agentes envolvidos no e-commerce, estão os sistemas de pagamento. Dentre eles o Near Field Communication (NFC)1, que é uma novidade na troca de informações sem fio, a evolução tecnológica para compras e o uso de provedores de serviços de pagamento on-line, como o PayPal e a Google Wallet e Apple Pay.

No Brasil o comércio eletrônico atingiu um volume de vendas de R$ 75,1 bilhões em 2019, com 178,5 milhões de pedidos realizados, conforme aponta a 3ª edição do relatório Neotrust, com base nas pesquisas realizadas Pelo Compre & Confie2 em parceria com o E-Commerce Brasil, isso equivale a um aumento de, aproximadamente, 16% em relação ao ano de 2018, que registrou 123 milhões de pedidos e obteve um faturamento de R$ 53,2 bilhões em 20183. O maior desde 2015.

Em fevereiro de 2020, período anterior a pandemia, a estimativa do Presidente da ABComm, Maurício Salvador, era de que o e comércio eletrônico teria crescimento de 18% neste ano, movimentando cerca de R$ 106 bilhões. Conforme constam das pesquisas realizadas pela Associação Brasileira de Comércio Eletrônico, entre o período de 1 a 18 de março deste ano, houve aumento expressivo nos setores de beleza, brinquedos e serviços alimentícios.

Ocorre que, em meio a nova realidade que se instala, a insolvência terá que se adaptar ao novo segmento de comércio eletrônico e todos os desafios trazidos por esse setor.

Ante esse cenário, diversas áreas já buscam soluções e regulamentações para mitigar riscos e solucionar problemas dentro do universo digital. Com a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), 13.709/18, todas as empresas devem se adequar aos novos termos de coleta e tratamento dos dados fornecidos por pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, para garantir proteção ao consumidor e segurança jurídica nas relações comerciais.

Dada a relevância do tema, a LGPD foi alterada pela lei 13.853, de 8 de julho de 2019, que permitiu a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão ligado diretamente à Presidência da República que visa estabelecer as normas e diretrizes para aplicação e interpretação da lei e interação com os demais órgãos e entidades relacionadas ao tema, inclusive, com o Ministério da Justiça, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e outros órgãos e entidades com competências sancionatórias e normativas. Também prorrogou a prazo de vacância da lei de 18 para 24 meses, passando a ser aplicada em 14 de agosto de 2020, sob o argumento de que a dilação do prazo se deu para à adequação empresarial. Atualmente o PL 5.762/19 tramita na Câmara dos Deputados para prorrogar a entrada em vigor da LGPD para agosto de 2022.

lei 7.962 de 2013 também versa sobre o tema das relações no mundo digital tratando especificamente do e-commerce (comércio eletrônico). O escopo da lei é no sentido de regulamentar o comércio de bens e serviços que ocorrem eletrônica ou digitalmente e, assim como a LGPD, visa a proteção e a transparência de informações fornecidas aos consumidores, sejam eles finalistas ou não, estando as sanções de sua inobservância descritas no Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Neste momento surgem questões relevantes para o sistema de insolvência como, por exemplo, qual será considerado o principal estabelecimento comercial dessas empresas? Como lidar com todos os players do comércio digital nacionais e internacionais? Como manter o valor da empresa após o pedido de falência para potencializar o valor dos ativos e satisfazer os créditos?

LC 167/2019, em vigência desde abril de 2019, criou o Inova Simples que, entre outras medidas, institui um modelo simplificado de abertura e fechamento de startups, além do comunicado e processamento direto dos pedidos de registro de marca ou de patente no INPI. A LC ainda subdivide o conceito de startup em dois: as incrementais, para aperfeiçoar produtos, modelos e serviços já existentes e as disruptivas que visam a criação de produtos ou serviços novos.

Conforme dados da revista Forbes “as startups não param de crescer no Brasil. Ao todo, estão registradas no país mais de 12 mil empreendimentos, de acordo com dados da Associação Brasileira de Startups (ABStartups). Em 2018, as primeiras startups brasileiras alcançaram o cobiçado status de unicórnio (denominação dada às empresas avaliadas em mais de US$ 1 bilhão), como é o caso da 99, do PagSeguro e do Nubank.”4

As startups estão em todas as aéreas e transitam pelos mais diferentes seguimentos do mercados. Um exemplo disso é a DeepLegal, uma lawtech brasileira, que aposta na inteligência artificial para facilitar as ações do mundo jurídico.

Todas essas relações são regulamentadas pelo Marco Civil da Internet, lei 12.965/2014, que “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.”5

A era digital exige mudanças!

Além das medidas supracitadas, todas as áreas do direito sofrem constantes alterações e adequações para atender essa nova demanda, principalmente o Direito Empresarial.

No direito brasileiro a legislação que trata da empresa é composta por diversos diplomas, incluindo o Código CivilLei AnticorrupçãoLei das Sociedades Anônimas, Leis Complementares, entre outras.

Vamos tratar nesse artigo dos temas trazidos na lei 11.101/2005, recuperação judicial e falência.

As ferramentas trazidas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência precisam se adequar à nova realidade. Diferente dos estabelecimentos comerciais físicos, o comércio digital é composto por ativos, em sua grande maioria, intangíveis. Nesse momento surgem algumas questões extremamente relevantes sobre a utilização da recuperação judicial pelas empresas de e-commerce e demais serviços, pelas startups e até mesmo sobre perfis em redes sociais que são utilizados como verdadeiros comércios de bens e serviços. Na falência as questões são ainda mais complexas quando se trata de arrecadação e venda de ativos das empresas, principalmente no que diz respeito a esses perfis em redes sociais que, muitas vezes, estão totalmente atrelados a imagem do proprietário da página e são valorados pela quantidade de seguidores.

É possível imaginar a recuperação judicial de uma empresa que tem como principal atividade o comércio realizado através de um perfil do Facebook ou Instagram. Como valorar esse ativo? Em qual velocidade ele é depreciado?

As principais redes sociais dispõem de um analytic, ferramenta responsável pelas métricas dos perfis, ou seja, existem vários critérios para analisar e valorar um perfil social como, por exemplo, ações da página, envolvimentos com a publicação, curtidas, alcance, visualizações, perfil dos seguidores, etc. Todos esses dispositivos são utilizados para cruzamento de dados, através de algoritmos, para maior eficácia no marketing digital. Ainda, dentro da composição de métricas é possível analisar o ROI (return over investment) de uma mídia social, calculado pelo lucro do investimento, menos o custo do investimento, divido pelo custo do investimento.

Além disso, para que seja possível analisar o valor do perfil é preciso, minimamente, saber o valor estimado de cada empresa, dividir esse valor pelos usuários e com esses números definir quanto vale cada ação de compartilhamento.

Dada a complexidade e importância do tema, algumas empresas já estão desenvolvendo parâmetros de avaliação, como a Backupify6, especializada em proteção de dados. O seu cofundador, Rob May, iniciou um sistema de cálculo para valoração dos perfis com base na média do valor das empresas como Facebook, Instagram, Linkedin, entre outras.    

Nesse aspecto é importante destacar que, conforme demonstrado, as questões sobre a venda dos ativos são complexas e merecem ser discutidas cuidadosamente pelos operadores do Direito.

Quando se trata de comércio digital, o banco de dados que integra os ativos intangíveis das empresas têm grande valor de mercado, pois é através dele que os algoritmos cruzam dados e direcionam propagandas para um determinado perfil de usuário, aumentando consideravelmente as chances de venda dos produtos e serviços. Contudo, a Lei Geral de Proteção de Dados aponta restrições quanto a manipulação, alteração ou qualquer tratamento as informações fornecidas pelos usuários, devendo seus titulares serem informados e dar expressamente o aceite para toda atividade que envolva esse conteúdo.

Assim, ainda que esse ativo intangível seja de grande valia, é possível a sua comercialização? Será necessária a autorização de todos os usuários nos casos em que estes ativos compuserem uma UPI no Plano de Recuperação Judicial? Quais ferramentas serão validadas e utilizadas para essa transferência de domínio?

Todas essas perguntas ainda não têm respostas bem definidas.

Outro ponto relevante para o processo de recuperação judicial e falência é a classificação dos investidores das startups, que nesse modelo empresarial ganham uma denominação de acordo com a fase de desenvolvimento da empresa.

Para elucidar as questões atinentes aos investidores será utilizado como exemplo o denominado “anjo” que pode ser uma pessoa física ou jurídica e geralmente é aquele que realiza o aporte inicial, seja de capital, material, tecnologia entre outros, em empresas com potencial de crescimento alto e retorno em curto e médio prazo. Os investimentos podem ser realizados pelo período máximo de 7 anos e o retorno ao investidor não será superior a 50% do lucro, podendo ser remunerado por até 5 anos.

O investidor-anjo tem sua regulamentação disposta na LC 155/2016, publicada em 28 de outubro de 2016, trazendo aspectos relevantes a relação investidor empresa e alterando a LC 123 de 14 de dezembro de 2006, em especial no que tange ao recolhimento de tributos, participação e responsabilidade societária.

O artigo 61-A, parágrafo 4º, inciso II7, da referida LC versa, especificamente, sobre a falta de responsabilidade o investidor-anjo na recuperação judicial, não sendo aplicado a ele o artigo 50 do Código Civil. A inaplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica e extensão dos efeitos é destacada como incentivo aos investidores que têm os seus aportes considerados receita da sociedade e não integram o quadro societário da empresa. 

Em que pese o disposto acima, que tem por objetivo o fomento aos investimentos, a dúvida e falta de regulação sobre a classificação dos investidores-anjo na recuperação judicial e na falência pode atuar no sentido contrário e servir como desincentivo. Sendo assim, ante a relevância da matéria é de suma a sua importância a discussão.

Para destacar a relevância dos financiamentos é possível fazer breve um paralelo com o mecanismo do DIP financing (debtor-in-possession financing)8, um modelo da legislação norte-americana, utilizado na obtenção de novos aportes para empresas em processo de recuperação judicial com a finalidade de financiar despesas operacionais e possibilitar a reorganização das dívidas. Em linhas gerais, o financiamento, teoricamente, é destinado à continuidade da atividade empresarial.

A legislação norte-americana assegura diversos incentivos a esse modelo de financiamento, fomentando a economia, inclusive com benefícios de ordem e garantias de preferências. Muito embora a legislação brasileira ainda não tenha regulamentado o DIP financing, o modelo de financiamento é utilizado e, dada a sua grande relevância para o cenário econômico, é objeto das alterações propostas no PL 10.220/2018, apensado ao PL 6229/2005.

A comparação se faz necessária para demonstrar que estes importantes agentes de mercado devem ser submetidos aos critérios da lei que disciplina o instituto da insolvência no Brasil, visando a segurança jurídica nas relações.  

Ainda sobre os investimentos em startups a Comissão de Valores Mobiliários, editou a Instrução 588, em julho de 2017, para regulamentar o investimento crowndfunding (regula a oferta pública de distribuição de valores mobiliários de emissão de sociedades empresárias de pequeno porte realizada com dispensa de registro por meio de plataforma eletrônica de investimento participativo, e tem por fim assegurar a proteção dos investidores e possibilitar a captação pública por parte destas sociedades.) Existem requisitos elencados na Instrução para a autorização de participação das pessoas jurídicas que serão beneficiárias e o artigo 17 trata do cancelamento da autorização concedida quando houver a decretação de falência, liquidação judicial ou extrajudicial ou dissolução do prestador de serviços.

Outro ponto relevante é o PL 9.590, que tramita desde fevereiro de 2018 na Câmara dos Deputados, e caso aprovado, será o marco legal das startups a fim de estabelecer critérios objetivos para a definição deste tipo de empresa, a regularização de investimento por fundos de investimentos em participação – FIPs, a participação em licitações, dentre outas questões relevantes para o fomento desse modelo empresarial.

Os problemas relacionados ao mundo digital dentro do universo da recuperação judicial e da falência são evidentes a medida que ainda não há jurisprudência consolidada, tendo em vista a recente relação estabelecida entre os agentes de mercado. Além disso, não podemos esquecer que uma das principais características desse mercado é a volatilidade com que as transformações ocorrem e migração do consumidor de uma plataforma para outra, tornando obsoleto um determinado e-commerce em um curto espaço de tempo.

É fundamental que o legislador desenvolva formas de atender esse novo mercado, visando introduzir no ordenamento jurídico, especificamente no sistema de insolvência brasileiro, ferramentas adaptáveis que possibilitem a efetividade da aplicação da lei.

Fonte: Migalhas – Lívia Gavioli Machado
Foto: Reprodução / Internet

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