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Nesta terça-feira, a 4ª Turma do STJ poderá dar prosseguimento ao julgamento de recurso sobre o tema

Como magistrada, aprendi a importância de se ouvir antes de julgar. Por muitas vezes uma ideia preconcebida sobre determinada situação mudava após escutar todos os lados envolvidos. Agora, como advogada, percebi que devemos ter a mesma cautela quando analisamos a viabilidade de determinada tese jurídica.

Recentemente, passei a conhecer melhor uma discussão que está sendo enfrentada nos tribunais de justiça há cerca de 3 anos: a possibilidade de o produtor rural se submeter ao procedimento de recuperação judicial, previsto na Lei nº 11.101/2005, sem a necessidade de cumprir com o requisito temporal de 2 (dois) anos de registro na Junta Comercial.

Em favor da tese, argumenta-se que o Código Civil, especificamente no artigo 971, não exige a sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis como condição prévia para o exercício de atividade econômica rural, o que afastaria o disposto no art. 48 da Lei nº 11.101/2005, que requer a comprovação do exercício regular das atividades há pelo menos 2 (dois) anos como condição para pleitear a recuperação judicial.

Já se passaram mais de 14 anos desde a edição da Lei de Recuperação Judicial (Lei nº 11.101/2005) e alguns ajustes, tanto legislativos como jurisprudenciais, foram feitos ao longo do tempo para corrigir distorções e dar efetividade a seu objetivo maior que é permitir que empresas economicamente viáveis, que estejam passando temporariamente por dificuldades financeiras, possam se restabelecer. No atual cenário, porém, a tese que pretende dispensar o mencionado requisito legal para a concessão de recuperação judicial aos produtores rurais precisa ser analisada com cuidado diante da importância dessa atividade econômica para o Brasil. Não podemos descuidar, também, do impacto no sistema de financiamento do agronegócio, sobretudo nos investimentos e na segurança das relações jurídicas.

O art. 971 do Código Civil, de fato, permite que o produtor rural exerça sua atividade sem o registro na Junta Comercial, contudo, o mesmo dispositivo confere a faculdade de “requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede” e estabelece a consequência jurídica dessa opção: “caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro”. A doutrina especializada, diante da redação da norma, entende que o registro do produtor rural tem natureza constitutiva e difere dos demais empresários, cuja inscrição na Junta Comercial tem efeito declaratório.

Assim, a pretensão de obter a recuperação judicial antes da implementação do biênio exigido no art. 48 da Lei nº 11.101/2005 fica claramente fragilizada, pois apenas com a inscrição na Junta Comercial o produtor rural adquire o status de empresário “para todos os efeitos”, notadamente, o de obter o acesso ao benefício da recuperação judicial. A fragilidade dos argumentos que amparam essa tese deve despertar a comunidade jurídica para os efeitos extremamente gravosos de seu acolhimento.

O agronegócio é um importante gerador de divisas para o Brasil e responde por grande parte do PIB e das exportações, cujos números estão em constante crescimento. Nesse universo produtivo, grandes fazendas, algumas com milhares de hectares, são exploradas por produtores rurais que optaram por não se registrar nas respectivas Juntas Comerciais. O que muitos desconhecem é o modelo de financiamento que tem possibilitado tal crescimento nas últimas décadas, no qual diversas empresas especializadas (fomentadoras ou tradings do agronegócio) antecipam recursos ou insumos na época do plantio e obtém, como principal meio de garantia, a safra futura, através de um título denominado Cédula de Produto Rural – CPR. Tais operações também protegem o produtor rural das oscilações de preço das commodities no mercado interno e externo.

Porém, entre a disponibilização dos recursos com essa garantia e a finalização da produção, mais comumente bem próximo à colheita, tem acontecido que tais empresas fomentadoras estão sendo surpreendidas com decisões judiciais que suspendem a entrega da safra, deferindo o processamento de recuperação judicial a produtores rurais que se registraram como pessoas jurídicas poucos dias antes de ajuizarem o pedido. Como os produtos da colheita em geral são perecíveis e a capacidade de armazenamento nas próprias fazendas é limitada, a safra previamente negociada é novamente vendida a terceiros, e isso sob o aval do Judiciário, que acata o argumento da necessidade de viabilizar a recuperação e o fluxo de caixa do produtor supostamente em crise.

Além do prejuízo imediato para as fomentadoras, cuja expectativa de receber o produto dado em garantia é frustrada, tal prática, acolhendo a tese exposta no início, provoca um verdadeiro colapso no atual modelo de financiamento do agronegócio brasileiro, coloca em risco o sistema de garantias e configura um atentado contra os princípios da segurança jurídica e da boa-fé nas relações negociais.

Isso porque já existe entre essas empresas um receio absolutamente válido em conceder um crédito a uma pessoa física com a garantia da safra futura e, no momento da colheita, descobrir que, na realidade, o produtor rural é um empresário registrado, suscetível ao regime de recuperação judicial próprio de empresas inscritas regularmente há mais de 2 (dois) anos como manda a Lei. Mais grave ainda é descobrir que esse produtor rural já obteve o processamento de sua recuperação judicial e que terá que aguardar para se submeter ao plano de recuperação a ser futuramente homologado.

Nesse cenário, as fomentadoras, dentre elas investidores internacionais, não mais terão interesse em antecipar os recursos ou insumos aos produtores rurais na época do plantio, pois as garantias não surtirão os efeitos esperados com a mudança da situação jurídica do tomador do crédito. O resultado esperado é a escassez e o encarecimento do crédito, queda na produção e consequências nefastas a milhares de outros produtores rurais que dependem do fomento para o cultivo e, ao contrário de alguns poucos, não têm o intuito de recorrer a tal manobra jurídica.

A estipulação de um prazo para que o empresário possa requerer a recuperação judicial se justifica para possibilitar o soerguimento de empresas economicamente viáveis e evitar que o instituto tão importante do direito empresarial seja utilizado com o objetivo de lesar credores. Não fosse tal impedimento, seriam muitos os casos de empreendimentos constituídos para ter acesso a crédito e, na sequência, requerer a recuperação judicial. O lapso temporal, portanto, coíbe o oportunismo. E é exatamente isso que está ocorrendo na atualidade.

Enquanto pessoa física, o produtor rural tem acesso ao crédito ou aos insumos e oferece como garantia a safra futura ou sua propriedade rural. Por ocasião da colheita, em vez de entregar a safra, busca a sua inscrição na Junta Comercial e recorre ao Judiciário alegando dificuldades financeiras. Com isso, as dívidas constituídas enquanto pessoa física são submetidas ao plano de recuperação judicial e a safra, embora garantida aos credores, é comercializada para terceiros. Essa é uma oportunidade única para que produtores rurais com patrimônio milionário (ou bilionário, em alguns casos) obtenham recursos com o crédito e a venda da safra, remetendo o pagamento dos credores ao resultado das colheitas dos próximos anos, a depender do plano de recuperação judicial homologado. É inquestionável o oportunismo perpetrado com o auxílio do Poder Judiciário.

Obviamente, nem todos usam tal expediente para blindar seu patrimônio e buscam o amparo nessa tese por terem efetivamente incorrido em estado de momentânea crise financeira. Todavia, ao exercer a faculdade legal de não se registrar na Junta Comercial, tais produtores auferiram vantagens (especialmente tributárias) e, também, desvantagens, como a impossibilidade jurídica de obter a recuperação judicial.

A atenção dos juristas e agentes econômicos diretamente envolvidos se volta agora para o Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe nortear a interpretação da legislação federal e uniformizar a jurisprudência dos tribunais de segunda instância. No dia 05/11/2019 (terça-feira), a Quarta Turma do Tribunal poderá dar prosseguimento ao julgamento de recurso sobre o tema com a apresentação do voto-vista do Ministro Luis Felipe Salomão no Recurso Especial nº 1.800.032/MT, cujo relator é o Ministro Marco Buzzi.

Para fomentar ainda mais o debate, no dia 25/10/2019 foi distribuído ao Ministro Marco Buzzi o Recurso Especial nº 1.834.932/MT, em que se discute a mesma tese jurídica, no qual o TJMT admitiu o recurso como representativo de controvérsia, dada a quantidade de processos existentes naquela corte com a mesma questão. Diante da relevância da matéria, conforme exposto nessa breve explanação, espera-se que o Tribunal da Cidadania exerça seu papel constitucional de guardião da legislação federal sem desconsiderar a impacto econômico de suas decisões.

Fonte: JOTA